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Sobre as Contribuições de Solidariedade Temporária obrigatórias em Portugal (ou os Windfall Profit Taxes portugueses)

06 Março 2024
Sobre as Contribuições de Solidariedade Temporária obrigatórias em Portugal (ou os Windfall Profit Taxes portugueses)
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Sobre as Contribuições de Solidariedade Temporária obrigatórias em Portugal (ou os Windfall Profit Taxes portugueses)

06 Março 2024

INTRODUÇÃO

Em Portugal, há já algum tempo, assim como por toda a Europa, tem feito parte da ordem do dia a introdução de novos impostos sobre os lucros das empresas, ditos “extraordinários” ou “inesperados”, comumente chamados de windfall (profit) taxes (em tradução livre: “impostos caídos do céu”).

Depois de muito se falar sobre a possibilidade de criação, em Portugal e na Europa, de impostos sobre lucros extraordinários ou inesperados e de ter sido aprovado o Regulamento (EU) 2022/1854 do Conselho de 6 de outubro de 2022, Portugal avançou com a criação deste tipo de imposto(s) através da Proposta de Lei n.º 47/XV/1.º, a qual deu origem à Lei n.º 24-B/2022, de 30 de dezembro.

AS CAUSAS

Depois dos efeitos provocados pela COVID-19 no mercado mundial, também a guerra na Ucrânia – pelo impacto que tem em vários setores de mercado, nomeadamente o petrolífero e o energético – contribuiu, decisivamente, para uma inflação mundial com reflexo generalizado na subida dos preços dos bens de consumo e da energia, em especial gás, petróleo e bens alimentares.

Com efeito, a situação global terá permitido a diversas empresas de alguns setores obterem lucros inesperadamente altos, especialmente, mas não só, onde estes resultem mais diretamente do aumento nos preços da energia e da alimentação.

Ao mesmo tempo, esta subida dos preços suscita, naturalmente, dificuldades acrescidas às famílias e às empresas.

Assim, e com o alegado propósito do financiamento das políticas anti-inflacionistas e da mitigação dos efeitos da inflação nas famílias e nas empresas, começou a ser considerada a introdução de novos impostos sobre os ditos lucros extraordinários ou inesperados, especialmente direcionados para os setores económicos onde esses lucros sejam mais evidentes e acentuados.

Inicialmente, foram apontados como sujeitos deste tipo de impostos os incluídos nos setores petrolífero e energético, mas, entretanto, também a banca, distribuição e outros setores começaram a ser falados.

A POSIÇÃO DA COMISSÃO EUROPEIA

No início de março de 2022, a Comissão Europeia emitiu uma Comunicação [COM (2022) 108 final] e pronunciou-se, no sentido de que poderiam ser adotadas pelos Estados-Membros medidas em matéria de auxílios estatais a fim de possibilitar o apoio às empresas e aos setores gravemente afetados pela evolução geopolítica. Para financiar essas medidas de emergência, a Comissão Europeia antecipou que os Estados-Membros poderiam ponderar a adoção de medidas fiscais temporárias sobre lucros inesperados.

Mais concretamente, a Comissão Europeia indicou que os Estados-Membros poderiam, a título excecional, vir a aprovar medidas fiscais que visem captar algumas receitas de certos produtores de eletricidade, tendo em vista a sua redistribuição pelos seus consumidores finais.

Dentro destas indicações, a Comissão esclareceu ainda que essas medidas não deveriam ser retroativas e serviriam apenas para recuperar uma parte dos lucros (extraordinários) efetivamente realizados. Indicou também que a duração das medidas deveria ser limitada e associada a uma situação de crise específica.

Dentro deste contexto, vários países europeus implementaram, ou anunciaram vir a implementar, windfall profit taxes, adotando modelos distintos e abrangendo diversos setores de atividade, para lá do energético.

O CASO DA ITÁLIA

A Itália introduziu um imposto sobre os lucros extraordinários ou inesperados logo em março de 2022, tendo começado por tributar tais ganhos a uma taxa de 25% e que deveria ser paga em 30 de junho e em 30 de novembro de 2022.

Fundamentalmente, foram aqui considerados lucros extraordinários ou inesperados os que resultem, no período entre 1 de outubro de 2021 e 30 abril de 2022, de um aumento das margens de lucro acima de 10% e superior a 5 milhões de euros, por comparação com o período entre 1 de outubro de 2020 e 30 de abril de 2022.

Este imposto recaiu sobre os setores da produção, venda e revenda de eletricidade, gás metano, gás natural e produtos petrolíferos.

O Governo italiano aprovou, entretanto, o aumento da taxa deste imposto de 25% para 35% e prorrogou o período de sua aplicação até, pelo menos, julho de 2023.

O CASO DA ESPANHA

Em Espanha, logo em setembro de 2021, foi imposto a fornecedores de energia o pagamento ao sistema elétrico espanhol de um montante proporcional ao aumento dos ganhos obtidos como resultado da incorporação do preço do gás natural nos preços da eletricidade.

Espanha propôs introduzir, entretanto, um novo imposto sobre os lucros extraordinários ou inesperados, correspondente a 1,2% dos lucros das companhias do setor energético com uma faturação acima de mil milhões de euros e tendo por referência o ano de 2019. Propôs-se, de igual forma, a aplicar uma taxa especial de 4,8% sobre as margens e comissões das entidades financeiras.

Em ambos os casos, foi expressamente prevista a proibição de repercussão do imposto aos consumidores, sob pena de poder ser aplicada uma sanção correspondente a 150% do montante repercutido.

O referido imposto recaiu sobre os anos de 2022 e de 2023 e deveria ser pago em setembro do ano seguinte, com um adiantamento de 50% em fevereiro do mesmo ano.

O CASO DO REINO UNIDO

O Reino Unido optou por aplicar o imposto sobre os lucros extraordinários ou inesperados apenas ao sector de extração de petróleo e de gás, mas antecipou-se um alargamento ao setor energético.

O imposto corresponde a uma taxa de 25% sobre os lucros destas empresas que acresce à taxa geral de 40%, já aplicável.

Os lucros das empresas deste setor têm, porém, um regime de apuramento dos lucros específico, com possibilidade de dedução de até 91,25% do imposto sobre os lucros extraordinários ou inesperados, em função do reinvestimento dos lucros no setor de petróleo e gás do Reino Unido.

Este imposto especial deveria manter-se em vigor até que o Governo britânico considerasse que os preços do petróleo e gás voltassem a níveis historicamente normais, tendo sido inicialmente previsto que expiraria em dezembro de 2025.

Não obstante, o Governo britânico alargou a vigência deste imposto até ao final de 2028 e ponderou aumentar a taxa do imposto de 25% para 35%.

O CASO DA HUNGRIA

A Hungria aplicará já impostos sobre os lucros extraordinários ou inesperados a diversos setores de atividade, incluindo a banca e a energia, mas também às telecomunicações, ao retalho e às companhias aéreas, prevendo regimes diferentes para cada setor.

O sector bancário, designadamente, deveria pagar uma taxa extraordinária sobre os resultados de 10%, em 2022, e de 8%, em 2023.

As telecomunicações e o retalho viram, deste modo, aplicadas taxas especiais progressivas de até 7% e 4,1%, respetivamente, em função dos resultados acima de um milhão de florins. As companhias aéreas deveriam também pagar uma taxa por cada passageiro.

O CASO DA GRÉCIA

A Grécia também introduziu, em maio de 2022, um imposto sobre os lucros extraordinários ou inesperados, para já aplicável apenas às empresas produtoras de eletricidade. Neste caso, os lucros considerados excessivos seriam apurados por referência ao preço do MWh e a taxa aplicável é de 90%.

O CASO DA ROMÉNIA

Roménia aplicou o seu novo imposto sobre os lucros extraordinários ou inesperados também apenas ao setor energético.

O imposto consistiu numa taxa de 80% aplicável aos lucros considerados excessivos, também por referência ao preço do MWh. Previsivelmente, este imposto seria temporário, devendo manter-se em vigor até 31 de março de 2023.

OUTROS PAÍSES EUROPEUS

A Alemanha, a França, a Áustria, a Irlanda e a Bélgica não avançaram imediatamente com impostos sobre lucros extraordinários ou inesperados.

A Alemanha e a França pareceram, aliás, ser os países onde estes impostos conheceram menos adesão por parte dos governos em funções, não existindo propostas concretas para a sua criação. Contudo, a Áustria, a Irlanda e a Bélgica estudaram a implementação destes impostos sobre lucros extraordinários ou inesperados para empresas do setor energético, em termos semelhantes aos em vigor noutros países.

Sucede, porém, que, entretanto, foi aprovado o Regulamento (UE) 2022/1854 do Conselho, de 6 de outubro de 2022.

O REGULAMENTO (UE) 2022/1854 DO CONSELHO

(i) o âmbito e a natureza

A Comissão Europeia anunciou, em setembro de 2022, a apresentação de uma proposta de criação de uma nova contribuição solidária temporária, de 33%, sobre os lucros das empresas do setor de energia que em 2022 tenham registado ganhos que ficaram 20% acima da média dos três anos anteriores.

Posteriormente, em outubro de 2022, foi aprovado o Regulamento (UE) 2022/1854 do Conselho, de 6 de outubro de 2022, relativo a uma intervenção de emergência para fazer face aos elevados preços da energia.

O Regulamento propõe-se fazer face ao aumento acentuado dos preços da eletricidade e às suas repercussões nas famílias e na indústria, adiantando que, se forem adotadas medidas nacionais descoordenadas, estas poderão afetar o funcionamento do mercado interno da energia, pondo em perigo a segurança do aprovisionamento e conduzindo a novos aumentos de preços nos Estados-Membros mais afetados pela crise.

Pressuposto deste Regulamento foi, também, que a solidariedade entre Estados-Membros, mediante a adoção de um limite máximo para as receitas de mercado a nível da União, geraria as receitas que permitiam aos Estados-Membros financiar medidas de apoio aos clientes finais de eletricidade, como as famílias, as pequenas e médias empresas (PME) e em outros setores com utilização intensiva de energia, preservando, ao mesmo tempo, os preços nos mercados da União e o comércio transfronteiras.

O citado Regulamento visava, assim, (i) reduzir o consumo de eletricidade, (ii) introduzir um limite máximo para as receitas de mercado de determinados produtores, (iii) habilitar os Estados-Membros a aplicarem medidas de intervenção pública de fixação de preços relativamente ao fornecimento de eletricidade e (iv) estabelecer regras com vista a uma contribuição obrigatória de solidariedade temporária.

Neste âmbito, o Regulamento (UE) 2022/1854 procedeu à introdução de uma nova “contribuição solidária”, aplicável às empresas e aos estabelecimentos permanentes da União com atividades nos setores do petróleo bruto, gás natural, carvão e refinação.

(ii) a redução do consumo bruto de eletricidade

O Regulamento em causa permitiu estabelecer a redução do consumo bruto mensal total de eletricidade em 10 %, em comparação com a média do consumo bruto de eletricidade no período compreendido entre 1 de novembro e 31 de março dos cinco anos consecutivos anteriores. Esta redução do consumo bruto de eletricidade durante as horas de ponta não podia ser inferior a 5%, por hora e em média.

(iii) o limite máximo para as receitas de mercado

O Regulamento (UE) 2022/1854 estabeleceu, igualmente, um limite máximo para as receitas de mercado obtidas com a venda de eletricidade produzida a partir das seguintes fontes: energia eólica, energia solar (térmica e fotovoltaica), energia geotérmica, energia hidroelétrica sem reservatório, combustíveis biomássicos (sólidos ou gasosos), excluindo o biometano, resíduos, energia nuclear, lenhite, produtos à base de petróleo bruto e turfa.

As receitas de mercado obtidas por estes produtores deveriam ser limitadas a 180 EUR, no máximo, por MWh de eletricidade produzida.

(iv) outras medidas (nacionais) de resposta à crise

O Regulamento (UE) 2022/1854 previu, em acréscimo, a possibilidade dos Estados-Membros adotarem medidas adicionais, designadamente, manter ou introduzir medidas que limitem ainda mais as receitas dos produtores a partir das fontes indicadas, incluindo a possibilidade de diferenciar entre tecnologias, bem como as receitas de mercado de outros participantes no mercado, compreendendo os que operam no comércio de eletricidade.

Possibilitou, igualmente, que estas medidas adicionais recaíssem sobre outras unidades de energia hidroelétrica, nomeadamente de barragem, sujeitando-as a um limite máximo para as receitas de mercado, ou manter ou introduzir medidas que limitem ainda mais as suas receitas de mercado, incluindo a possibilidade de diferenciar entre tecnologias.

Estas medidas adicionais ficaram, porém, subordinadas a alguns princípios: deviam ser proporcionadas e não discriminatórias, não podiam comprometer os sinais de investimento, deviam assegurar que os custos de investimento e de exploração fossem cobertos, não podiam distorcer o funcionamento dos mercados grossistas de eletricidade e, em especial, não podiam afetar a ordem de mérito nem a formação dos preços no mercado grossista, e deviam ser compatíveis com o direito da União.

(v) as medidas aplicáveis ao mercado retalhista

O Regulamento (UE) 2022/1854 previa, por outro lado, a possibilidade de extensão temporária das medidas de intervenção pública de fixação dos preços da eletricidade às PME, bem como a possibilidade dos Estados-Membros fixarem, a título excecional e temporário, um preço de fornecimento da eletricidade abaixo do custo, desde que estejam preenchidas todas as seguintes condições: a medida abranger uma quantidade limitada de consumo e mantém um incentivo à redução da procura, não haver discriminação entre fornecedores, os fornecedores serem compensados pelo fornecimento abaixo do custo e todos os fornecedores serem elegíveis para apresentar ofertas ao preço de fornecimento da eletricidade abaixo do custo na mesma base.

(vi) os setores do petróleo bruto, gás natural, carvão e refinação

Para os setores do petróleo bruto, do gás natural, do carvão e da refinação, o Regulamento (UE) 2022/1854 previa uma medida especial, centrada numa nova “contribuição de solidariedade temporária obrigatória” que deveria recair sobre os “lucros excedentários” gerados por empresas e estabelecimentos permanentes da União com atividades nos indicados setores.

(vii) o período de vigência

O Regulamento entrou em vigor no dia 7 de outubro de 2022 e era, por natureza, obrigatório e diretamente aplicável em todos os Estados-Membros até 31 de dezembro de 2023. Este regulamento, no entanto, não era exequível por si mesmo, necessitando de ser implementado pelos Estados-Membros.

Além disso, previa datas e períodos de vigência específicos para algumas medidas, estabelecendo-se que a redução do consumo bruto de eletricidade durante as horas de ponta era aplicável de 1 de dezembro de 2022 a 31 de março de 2023, que as medidas para alcançar a redução da procura e distribuição das receitas excedentárias vigorariam a partir de 1 de dezembro de 2022 e que o limite máximo para as receitas de mercado aos produtores de eletricidade e outras medidas nacionais de resposta à crise eram aplicáveis entre 1 de dezembro de 2022 e 30 de junho de 2023.

A CONTRIBUIÇÃO DE SOLIDARIEDADE TEMPORÁRIA OBRIGATÓRIA PREVISTA NO REGULAMENTO (UE) 2022/1854

(i) obrigatoriedade

O Regulamento (EU) 2022/1854 era taxativo, referindo a obrigatoriedade da contribuição de solidariedade temporária para os Estados-Membros, exceto se os mesmos tivessem já aprovado medidas nacionais equivalentes. Neste caso, os Estados-Membros deveriam assegurar que tais medidas nacionais equivalentes aprovadas tinham objetivos semelhantes aos da contribuição de solidariedade temporária e que estariam sujeitas a regras semelhantes às regras que regiam esta contribuição, nos termos do regulamento, bem como que geravam receitas de valor comparável, ou superior, ao valor estimado das receitas provenientes da contribuição de solidariedade.

(ii) a incidência subjetiva

A nova contribuição de solidariedade devia ser calculada sobre os lucros tributáveis, determinados em conformidade com as regras fiscais nacionais, no exercício fiscal de 2022 e/ou no exercício fiscal de 2023 e durante a totalidade dos mesmos, que se situassem acima do correspondente a um aumento de 20% dos lucros tributáveis médios, determinados em conformidade com as regras fiscais nacionais, nos quatro exercícios fiscais com início em ou após 1 de janeiro de 2018. O Regulamento previa também que se a média dos lucros tributáveis nesses quatro exercícios fiscais fosse negativa, os lucros tributáveis médios deviam ser iguais a zero para efeitos do cálculo da contribuição de solidariedade temporária.

(iii) a taxa

A taxa aplicável para o cálculo da contribuição de solidariedade temporária devia ascender a, pelo menos, 33% da base de cálculo e acrescia aos impostos e taxas normais aplicáveis, em conformidade com o direito de cada Estado-Membro.

(iv) a consignação de receita

O Regulamento (UE) 2022/1854 estabeleceu expressamente que as receitas da contribuição de solidariedade temporária deviam ser utilizadas pelos Estados-Membros de forma a produzir efeitos atempadamente para qualquer dos seguintes fins:

  • apoio financeiro aos clientes finais de energia, em especial as famílias vulneráveis, a fim de atenuar os efeitos dos preços elevados da energia, de modo focalizado;
  • apoio financeiro para reduzir o consumo de energia, por exemplo através de leilões ou de regimes de concurso para a redução da procura, reduzindo os custos de aquisição de energia dos clientes finais de energia para determinados volumes de consumo, promovendo investimentos por parte dos clientes finais de energia em energias renováveis, investimentos estruturais em eficiência energética ou outras tecnologias de descarbonização;
  • apoio financeiro para empresas de setores com utilização intensiva de energia, desde que estejam subordinadas a investimentos em energias renováveis, eficiência energética ou outras tecnologias de descarbonização; e
  • apoio financeiro para desenvolver a autonomia energética, em especial investimentos em consonância com as metas do plano REPowerEU, estabelecido no Plano REPowerEU e na Ação Europeia Conjunta REPowerEU, como projetos com uma dimensão transfronteiras.

Num espírito de “solidariedade” entre Estados-Membros, estes poderiam ainda afetar uma parte das receitas da contribuição de solidariedade temporária obrigatória ao financiamento comum de medidas destinadas a reduzir os efeitos prejudiciais da crise energética, incluindo o apoio à proteção do emprego e à requalificação e melhoria das competências da mão de obra, ou a promoção de investimentos na eficiência energética e nas energias renováveis, incluindo no âmbito de projetos transfronteiras e do Mecanismo de financiamento da energia renovável da União previsto no Regulamento (UE) 2018/1999 do Parlamento Europeu e do Conselho, relativo à Governação da União da Energia e da Ação Climática.

Salienta-se, aqui, a expressa referência do Regulamento para a produção de efeitos “atempados”, induzindo que as medidas deveriam ter caráter direto e imediato, sem dilações temporais.

De igual modo, este Regulamento (UE) 2022/1854 estabeleceu, também taxativamente, que as medidas deveriam ser claramente definidas, transparentes, proporcionadas, não discriminatórias e verificáveis.

(v) a entrada em vigor

O Regulamento (UE) 2022/1854, como anteriormente se constatou, entrou em vigor no dia 7 de outubro de 2022, sendo obrigatório e diretamente aplicável, dada a sua natureza, aos Estados-Membros.

Sem prescindir, verificou-se que este Regulamento não era exequível por si mesmo, uma vez que as medidas adotadas pelo Regulamento careciam de implementação por parte dos Estados-Membros, razão pela qual ficou estabelecido que os Estados-Membros deveriam adotar e publicar as medidas que concretizassem a contribuição de solidariedade temporária obrigatória, impreterivelmente, até 31 de dezembro de 2022.

(vi) a vigência

O Regulamento (UE) 2022/1854 estabeleceu que a contribuição de solidariedade obrigatória era excecional e estritamente temporária. E, por isto mesmo, ficou expressamente definido que a contribuição de solidariedade deveria aplicar-se apenas aos exercícios fiscais de 2022 e/ou 2023.

A LEI N.º 24-B/2022, DE 30 DE DEZEMBRO E OS NOVOS WINDFALL TAXES PORTUGUESES

O Governo português anunciou publicamente que Portugal apoiaria estas medidas, participando ativamente nos trabalhos da Comissão Europeia e anunciando que iria criar uma contribuição solidária de 33% sobre os lucros das empresas do setor de energia que, em 2022, registaram ganhos que ficaram 20% acima da média dos três anos anteriores.

Na apresentação da Proposta de Lei do Orçamento do Estado para 2023 (OE 2023), o Ministro das Finanças confirmou que iria introduzir a nova contribuição, seguindo a “decisão a nível europeu” e avançando que teria um “regime próprio” e que a mesma entraria em vigor antes do OE para 2023.

A “decisão a nível europeu” a que aludia o Governo era respeitante ao Regulamento (UE) 2022/1854 do Conselho, de 6 de outubro de 2022, que veio criar a referida contribuição de solidariedade temporária e obrigatória.

Como se já viu também, o Regulamento era, em si mesmo, obrigatório e diretamente aplicável em Portugal e a contribuição de solidariedade temporária e obrigatória deveria ser implementada até 31 de dezembro de 2022.

Nesta sequência, o Governo apresentou, em 17 de novembro de 2022, a Proposta de Lei n.º 47/XV/1.ª, que previu a criação de uma contribuição de solidariedade temporária sobre o setor da energia (a CST Energia) e de uma outra sobre o setor da distribuição alimentar (a CST Distribuição Alimentar).

Esta Proposta de Lei veio a ser aprovada em reunião plenária de 22 de dezembro de 2022 e promulgada pelo Presidente da República a 28 de dezembro do mesmo ano, dando origem à Lei n.º 24-B/2022, de 30 de dezembro, publicada neste mesmo dia e na véspera do final do ano de 2022.

Simultaneamente, foi aprovada a Portaria n.º 312-E/2022, de 30 de dezembro, que regulamenta a CST Distribuição Alimentar, ficando por aprovar idêntica Portaria para a CST Energia.

Fundamentalmente, a Lei n.º 24-B/2022, de 30 de dezembro, acompanhou integralmente a Proposta de Lei n.º 47/XV/1.ª, tendo apenas sido aprovada uma proposta de alteração, apresentada pelo grupo parlamentar do Partido Socialista e que retirou do âmbito da exclusão da CST Distribuição Alimentar as micro ou pequena empresa sujeitas ao regime especial de tributação dos grupos de sociedades do IRC e em que o volume de negócios do grupo de sociedades por referência ao período de tributação em causa fosse superior a € 100.000.000.

 AS REGRAS GERAIS

(i) o objeto

A Lei n.º 24-B/2022, de 30 de dezembro, criou e regulamentou, portanto, duas contribuições de solidariedade temporária: a CST Energia – contribuição de solidariedade temporária sobre o setor da energia – e a CST Distribuição Alimentar – contribuição de solidariedade temporária sobre o setor da distribuição alimentar. E assumiu, expressamente, que a CST Energia consubstancia “uma intervenção de emergência para fazer face aos elevados preços da energia”, enquanto que a CST Distribuição Alimentar se propõe “fazer face ao fenómeno inflacionista “.

Verificou-se, desde logo, como previsto na Proposta de Lei n.º 47/XV/1.ª (do Governo), que a Lei n.º 24-B/2022, de 30 de dezembro, foi além do referido Regulamento (UE) 2022/1854 do Conselho, de 6 de outubro de 2022, onde se previa somente a criação de uma contribuição de solidariedade temporária obrigatória aplicável, como vimos, aos setores da energia de petróleo bruto, gás natural, carvão e refinação.

(ii) a vigência e a entrada em vigor

A Lei n.º 24-B/2022, de 30 de dezembro, entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação, ou seja, em 31 de dezembro de 2022.

Ambas as contribuições eram temporárias e apenas aplicáveis aos lucros considerados extraordinários nos períodos de tributação, para efeitos do IRC, que se iniciassem nos anos de 2022 e 2023.

(iii) a liquidação

As contribuições previstas deveriam ser liquidadas pelo sujeito passivo, ainda que isento, através de declaração de modelo oficial que deveria ser aprovada por portaria do membro do governo responsável pela área governativa das finanças.

Estabelecia-se também que os sujeitos passivos deviam proceder à liquidação da contribuição de forma individual e autónoma, mesmo quando lhes fosse aplicável o regime especial de tributação dos grupos de sociedades.

A declaração deveria ainda ser enviada à Administração Tributária, por transmissão eletrónica de dados, até ao dia 20 – independentemente desse dia ser útil ou não útil – do 9.º mês seguinte à data do termo do período de tributação a que respeita.

A (auto)liquidação podia ser corrigida pela Administração Tributária, nos prazos gerais, caso fossem verificados erros, omissões ou alterações que determinassem a exigência de um valor de contribuição superior ao liquidado.

De igual modo, previa-se que na falta de liquidação da contribuição nos termos dos números anteriores, a mesma poderia ser efetuada (oficiosamente) pela Administração Tributária com base nos elementos de que esta disponha.

(iv) o pagamento

As contribuições previstas deveriam ser liquidadas pelo sujeito passivo, ainda que isento, através de declaração de modelo oficial a aprovar por portaria do membro do governo responsável pela área governativa das finanças.

(v) a (não) dedutibilidade

De harmonia com o Regulamento (UE) 2022/1854 do Conselho, de 6 de outubro de 2022, e em conformidade com a Proposta de Lei n.º 47/XV/1.ª, a Lei n.º 24-B/2022, de 30 de dezembro, estabeleceu que as contribuições não eram dedutíveis para efeitos de determinação do lucro tributável em IRC, mesmo quando contabilizadas como gastos do período de tributação.

(vi) a consignação

A Lei n.º 24-B/2022, de 30 de dezembro, previa ainda expressamente como deveriam ser afetadas as receitas das contribuições agora criadas. Assim, a receita obtida com a CST Energia deveria ser afeta, por despacho dos ministros das finanças e da energia, a, pelo menos, um dos seguintes fins:

  • medidas de apoio financeiro aos clientes finais de energia, em especial as famílias vulneráveis, a fim de atenuar os efeitos dos preços elevados da energia, de modo focalizado;
  • medidas de apoio financeiro para ajudar a reduzir o consumo de energia, por exemplo através de leilões ou de regimes de concurso para a redução da procura, reduzindo os custos de aquisição de energia dos clientes finais de energia para determinados volumes de consumo, promovendo investimentos por parte dos clientes finais de energia em energias renováveis, investimentos estruturais em eficiência energética ou outras tecnologias de descarbonização;
  • medidas de apoio financeiro para apoiar as empresas de setores com utilização intensiva de energia, desde que estejam subordinadas a investimentos em energias renováveis, eficiência energética ou outras tecnologias de descarbonização; e
  • medidas de apoio financeiro para desenvolver a autonomia energética, em especial investimentos em consonância com as metas do plano REPowerEU, estabelecido no Plano REPowerEU e na Ação Europeia Conjunta REPowerEU.

Por seu lado, a receita obtida com a CST Distribuição Alimentar deveria ser afeta, por despacho dos ministros das finanças e da energia, a, pelo menos, um dos seguintes fins:

  • ações de apoio ao aumento de encargos com bens alimentares a favor da população mais vulnerável, designadamente através de entidades do setor social;
  • medidas para garantir a execução da política de defesa do consumidor com o objetivo de assegurar um elevado nível de proteção ao mesmo, por via do Fundo do Consumidor;
  • medidas de apoio financeiro a micro e pequenas empresas de comércio, serviços e restauração que sejam particularmente afetadas pelo aumento dos custos de funcionamento e da inflação e pela diminuição da procura, através da afetação parcial da receita ao Fundo de Modernização do Comércio para este efeito; e
  •  medidas de apoio à qualificação dos profissionais afetos a micro e pequenas empresas de comércio, serviços e restauração, para aumentar a resiliência destas empresas, através da afetação parcial da receita ao Fundo de Modernização do Comércio para este efeito.

A NOVA CST ENERGIA, EM ESPECIAL

(i) a incidência subjetiva

A incidência subjetiva da CST Energia acompanhou o Regulamento (UE) 2022/1854 do Conselho, de 6 de outubro de 2022, sendo aplicável aos sujeitos passivos de IRC residentes que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola, bem como aos sujeitos passivos de IRC não residentes com estabelecimento permanente em território português, que desenvolvem atividades nos setores do petróleo bruto, gás natural, carvão e refinação.

Para este efeito, foi proposto que se entendesse que os sujeitos passivos desenvolvem atividades nos setores de petróleo bruto, do gás natural, do carvão e da refinação quando gerassem pelo menos 37,5 % do seu volume de negócios em atividades económicas dos setores da extração, mineração, refinação de petróleo ou fabricação de produtos de coqueria, consoante referido no Regulamento (CE) 1893/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho.

Noutro âmbito, foi também expressamente previsto que se considerasse que um sujeito passivo de IRC não residente possuiria um estabelecimento permanente em território português quando exercesse, no todo ou em parte, a sua atividade através de uma instalação fixa localizada em território português e os lucros que lhe sejam imputáveis se encontrem sujeitos a IRC.

(ii) a incidência objetiva

A CST Energia deveria ser aplicável aos lucros considerados excedentários nos períodos de tributação para efeitos do IRC que se iniciassem nos anos de 2022 e 2023, em conformidade com o previsto no Regulamento (UE) 2022/1854.

Para este efeito, foi proposto que fossem considerados lucros excedentários a parte dos lucros tributáveis, dos períodos de tributação de 2022 e 2023, que excedessem o correspondente a 20% de aumento em relação à média dos lucros tributáveis nos quatro períodos de tributação com início nos anos de 2018 a 2021, também em conformidade com o previsto no Regulamento (UE) 2022/1854. Mas a Lei n.º 24-B/2022, de 30 de dezembro, previa também que, nos casos em que a média dos lucros tributáveis daqueles quatro períodos de tributação seja negativa, se considerasse que essa média era igual a zero, incidindo a CST Energia sobre a totalidade do lucro tributável.

Previu-se, ainda, que no caso de sujeitos passivos aos quais seja aplicável o regime especial de tributação dos grupos de sociedades, o lucro tributável relevante fosse o apurado por cada sujeito passivo na sua declaração de rendimentos.

A Lei n.º 24-B/2022, de 30 de dezembro previa, por último, regimes especiais aplicáveis aos casos de cisão e de fusão de sociedades. Assim, no caso de se ter verificado uma operação de cisão durante os períodos de tributação relevantes, o lucro tributável a considerar, relativamente aos períodos anteriores à cisão, deveria ser a parte proporcional, atento o valor de mercado dos patrimónios destacados, correspondente ao sujeito passivo cindido.

Por seu lado, no caso de se ter verificado uma operação de fusão durante os períodos de tributação relevantes, o lucro tributável a considerar, relativamente aos períodos anteriores à fusão, devia ser a soma algébrica dos lucros tributáveis correspondentes aos sujeitos passivos objeto de fusão.

(iii) a taxa aplicável

A taxa da CST Energia era de 33% e recaía sobre os lucros considerados excedentários, nos termos já indicados anteriormente.

A NOVA CST DISTRIBUIÇÃO ALIMENTAR, EM ESPECIAL

(i) a incidência subjetiva

A CST Distribuição Alimentar seria aplicável aos sujeitos passivos de IRC residentes que exercessem, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola, bem como aos sujeitos passivos de IRC não residentes com estabelecimento permanente em território português, que explorassem estabelecimentos de comércio alimentar de produtos de origem animal e vegetal, frescos ou congelados, transformados ou crus, a granel ou pré-embalados.

Para os sujeitos passivos de IRC não residentes, previu-se igualmente que, para efeitos da Lei n.º 24-B/2022, de 30 de dezembro, «Estabelecimento de comércio alimentar» seria o local no qual se exerce uma atividade de comércio enquadrada num dos códigos de atividade económica (CAE), a definir por portaria dos Ministros das Finanças e da Economia, que compreenda o comércio a retalho alimentar ou com predominância de produtos alimentares, identificando-se, neste último caso, algum grau de subjetividade evitável e indesejado.

Esta é a Portaria n.º 312-E/2022, de 30 de dezembro, nos termos da qual eram abrangidos pela noção de «Estabelecimento de comércio alimentar» os estabelecimentos que exerçam uma atividade de comércio correspondente aos seguintes CAE:

  • 47111 Comércio a retalho em supermercados e hipermercados;
  • 47112 Comércio a retalho em outros estabelecimentos não especializados, com predominância de produtos alimentares, bebidas ou tabaco;
  • 47210 Comércio a retalho de frutas e produtos hortícolas, em estabelecimentos especializados;
  • 47220 Comércio a retalho de carne e produtos à base de carne, em estabelecimentos especializados;
  • 47230 Comércio a retalho de peixe, crustáceos e moluscos, em estabelecimentos especializados;
  • 47240 Comércio a retalho de pão, de produtos de pastelaria e de confeitaria, em estabelecimentos especializados;
  • 47250 Comércio a retalho de bebidas, em estabelecimentos especializados;
  • 47291 Comércio a retalho de leite e de derivados, em estabelecimentos especializados;
  • 47292 Comércio a retalho de produtos alimentares, naturais e dietéticos, em estabelecimentos especializados;
  • 47293 Outro comércio a retalho de produtos alimentares, em estabelecimentos especializados, n. e.

(ii) as não sujeições

Previu-se que ficariam excluídos da CST Distribuição Alimentar os sujeitos passivos que se qualificassem, no período de tributação da contribuição (2022 ou 2023), como micro ou pequenas empresas, nos termos do Decreto-Lei n.º 372/2007, de 6 de novembro, na sua redação atual.

No entanto, e em consequência da proposta de alteração apresentada pelo grupo parlamentar do Partido Socialista, ficariam fora do âmbito da exclusão da CST Distribuição Alimentar as micro ou pequenas empresas sujeitas ao regime especial de tributação dos grupos de sociedades do IRC e em que o volume de negócios do grupo de sociedades, por referência ao período de tributação em causa, for superior a € 100.000.000.

(iii) as isenções subjetivas

Ficariam isentos da CST Distribuição Alimentar os sujeitos passivos cuja atividade de comércio a retalho alimentar ou com predominância de produtos alimentares tivesse, no período de tributação a que se refere a contribuição (2022 ou 2023), natureza acessória, o que se considera verificado quando não represente mais de 25% do volume de negócios anual total.

(iv) a incidência objetiva

A CST Distribuição Alimentar era aplicável aos lucros considerados excedentários nos períodos de tributação, para efeitos do IRC, que se iniciem nos anos de 2022 e 2023.

Para este efeito, e à semelhança da TSE Energia, foi proposto serem considerados lucros excedentários a parte dos lucros tributáveis, dos períodos de tributação de 2022 e 2023, que excedam o correspondente a 20% de aumento em relação à média dos lucros tributáveis nos quatro períodos de tributação com início nos anos de 2018 a 2021.

Também aqui se previu que, nos casos em que a média dos lucros tributáveis daqueles quatro períodos de tributação, considera-se que essa média é igual a zero, incidindo a CST Distribuição Alimentar sobre a totalidade do lucro tributável dos anos de 2022 e 2023. Previu-se também que, no caso de sujeitos passivos aos quais fosse aplicável o regime especial de tributação dos grupos de sociedades, o lucro tributável relevante seria o apurado por cada sujeito passivo na sua declaração de rendimentos.

Também neste caso se previam os mesmos regimes especiais aplicáveis aos casos de cisão e de fusão de sociedades. Assim, no caso de se ter verificado uma operação de cisão durante os períodos de tributação relevantes, o lucro tributável a considerar, relativamente aos períodos anteriores à cisão, deve ser a parte proporcional, atento o valor de mercado dos patrimónios destacados, correspondente ao sujeito passivo cindido.

Por seu lado, no caso de se ter verificado uma operação de fusão durante os períodos de tributação relevantes, o lucro tributável a considerar, relativamente aos períodos anteriores à fusão, deveria ser o correspondente à soma algébrica dos lucros tributáveis correspondentes aos sujeitos passivos objeto de fusão.

(v) a taxa aplicável

A taxa da CST Distribuição Alimentar foi fixada em 33% e recaía sobre os lucros considerados excedentários apurados nos termos indicados no ponto anterior.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS

Portugal implementou, entretanto, através da Lei n.º 24-B/2022, de 30 de dezembro, as duas referidas novas contribuições sobre os lucros ditos excedentários, não obstante o então Primeiro-Ministro ter declarado que a situação portuguesa não era comparável à de outros países devido à carga fiscal elevada sobre as empresas.

De facto, os principais setores de atividade que noutros países europeus foram sujeitos a impostos sobre lucros extraordinários ou inesperados encontram-se, já, em Portugal submetidos a algumas contribuições financeiras setoriais e extraordinárias (com alguns anos) e que oneram a normal tributação sobre os lucros em sede de IRC, ainda que com base de incidência diversa.

No caso do setor da energia, é já exigida em Portugal a contribuição extraordinária sobre o setor energético, desde 2014, e o setor alimentar está, por seu lado, sujeito à taxa de segurança alimentar “mais”, desde 2012.

Para além destes, existem ainda, em Portugal, a contribuição sobre o setor bancário, desde 2011, o adicional de solidariedade sobre o setor bancário, desde 2020, a contribuição extraordinária sobre a indústria farmacêutica, desde 2015, e a contribuição extraordinária sobre os fornecedores da indústria de dispositivos médicos do serviço nacional de saúde, desde 2021. Em vias de criação estava ainda (de novo) e para 2023, uma nova contribuição especial para a conservação dos recursos florestais.

Não é possível saber, contudo, qual a concreta receita gerada por cada uma destas contribuições, já que não se encontram devidamente discriminadas na Lei do Orçamento do Estado, o que viola, tudo indica, normas e princípios constitucionais e de orçamentação das receitas públicas, com consequências que os Tribunais não têm tido, ainda, a coragem de assumir.

Ora, todas estas “contribuições” acresciam, como referido, à normal tributação sobre os lucros, em sede de IRC, a que as empresas portuguesas que atuam nestes setores estão também submetidas, nomeadamente do setor energético e do setor alimentar. E a verdade é que parece ser possível identificar coincidência de objetivos pretendidos pela CESE e pela CST Energia, tendo presente os critérios de afetação da receita apontados na Proposta de Lei n.º 47/XV/1.ª e que a CESE visa, designadamente, o financiamento de políticas sociais e ambientais do setor energético. Mas aqui, como se viu, o Regulamento parece não permitir a coexistência de múltiplas contribuições, se forem equivalentes nos seus objetivos e gerarem receita de valor comparável ou superior.

Por seu lado, e apesar da CST Distribuição Alimentar não estar abrangida pelo Regulamento (EU) 2022/1854 do Conselho, identificavam-se, também aqui, potenciais coincidências nos objetivos a prosseguir relacionados com a defesa dos consumidores.

Mas o certo é também que, em Portugal, o imposto (“normal”) sobre os lucros, o IRC, neste momento, já incide (mais do que proporcionalmente) sobre lucros “excessivos” ou, como lhes chamou a Lei n.º 24-B/2022, de 30 de dezembro, “excedentários”, na justa medida em que há a acrescer-lhe uma derrama estadual que implica taxas adicionais (à taxa normal de 21%), de 3%, de 7% e de 9%, consoante o “escalão”, a que acresce, em alguns Municípios, a derrama municipal, até 1,5% – o que sobe a taxa global do imposto para (em termos “grosseiros”) 31,5%, a final (tornando-o progressivo).

É possível identificar, porém, mais alguns outros constrangimentos para a concretização destes novos impostos sobre os lucros em Portugal.

Desde logo, haveria que ter presente e acautelar o princípio da igualdade, o qual exige uma justificação, pública e objetiva, para taxar (de novo) determinadas empresas (e não taxar as demais). Aliás, esta questão é especialmente pertinente quando existem (outros) setores económicos que obtiveram e continuam a obter lucros (também eles) extraordinários ou inesperados, como sucede, atualmente, com o setor do armamento e da defesa, ou como sucedeu (e poderá vir a suceder, de novo, no inverno…) com o setor da saúde, especialmente o relativo a produtos de proteção e desinfeção (contra a COVID-19), o que, como veremos, justificará questões de outra natureza, relativas às ajudas do Estado.

Esta justificação, pública e objetiva, que se impõe poderia, porém, estar facilitada quando o imposto é temporário, de natureza extraordinária e solidária e quando foi introduzido por um Regulamento europeu. Mas a verdade é que, analisada a Lei n.º 24-B/2022, de 30 de dezembro, e conforme se tinha indicado já na análise à Proposta de Lei n.º 47/XV/1.ª, não se identificam razões objetivas para comprimir o princípio da igualdade da tributação, especialmente no que se refere ao setor alimentar e relativamente ao qual, aliás, a Lei n.º 24-B/2022, de 30 de dezembro, se implica “num esforço de solidariedade adicional”, possivelmente referindo-se, mesmo, à taxa de segurança alimentar “mais”.

Além disso, a verdade é que, em Portugal, como é bem de ver, os impostos extraordinários tendem a perpetuar-se, como sucede com as outras contribuições financeiras setoriais, como a própria CESE ou a taxa de segurança alimentar “mais”.

Havia por isso, desde logo, o fundado receio que este pudesse também vir a ser o caso destes novos impostos – à semelhança do que se observa em Itália e em Inglaterra, onde, como se viu, os prazos de aplicação dos windfall taxes já foram alargados para 2023 e 2028, respetivamente.

Haverá já, igualmente, que ter presente a necessidade de harmonização da nova CST Energia com a legislação europeia, nomeadamente a Diretiva Tributação da Energia, o que poderá também não ser simples.

No mesmo seguimento, também haverá ainda questões de auxílios do Estado, que a própria Comissão Europeia já ressalvou e que devem ser salvaguardadas. E não só porque há empresas que podem sair “beneficiadas” por não estarem sujeitas aos novos tributos, enquanto outras ficarão submetidas à nova contribuição, mas também porque os próprios auxílios do Estado podem revelar-se algo perversos ao transferir empresas “beneficiárias” para o âmbito de aplicação destes novos impostos sobre lucros extraordinários ou inesperados continuando a ser, neste âmbito, a Lei n.º 24-B/2022, de 30 de dezembro absolutamente omissa.

O certo é que a Revisão Constitucional de 1997, de alguma forma, passou a prever um terceiro género de tributos – as contribuições financeiras setoriais – e a doutrina e a jurisprudência têm vindo a entender que estes (novos) “impostos” não estão, afinal, sujeitos aos princípios e regras geralmente aplicáveis aos (outros) impostos, mesmo que tenham a natureza de prestações coativas e sejam unilaterais.

Não obstante, já o Professor Sousa Franco ensinava, nas décadas de 60 a 90, que este tipo de contribuições – então “parafiscais” – podiam ter regime e natureza distintos dos impostos. No entanto, quando tais tributos (parafiscais) assumissem a natureza de (verdadeiros) impostos e fossem, assim, prestações coativas e unilaterais, estariam sujeitos às mesmas regras – se impostos, às regras dos impostos, se taxas, às regras das taxas (ou no mais que fossem) –, mas sem que se admitisse tal tertium genus, ora excluído das garantias constitucionais tipicamente inerentes aos impostos e conquistadas ao longo de décadas.

A nova doutrina e a nova jurisprudência, (pós 1997) têm, portanto, libertado o legislador destes constrangimentos. Mas nada garante que assim continuem, especialmente se estivermos perante contribuições (impostos) que são aplicáveis a setores que já estão presentemente sujeitos a outras contribuições financeiras, setoriais, ou outras ditas, também elas, temporárias, excecionais e extraordinárias. Nomeadamente quando a própria Lei n.º 24-B/2022, de 30 de dezembro, trata estas novas contribuições como verdadeiros impostos sobre os lucros, tanto na sua natureza como na sua forma de liquidação.

De igual modo, a Constituição não permite a criação de impostos retroativos, como sucede, visivelmente, neste mesmo caso, e ao contrário de outros países europeus (vg. Itália), onde os impostos sobre tais lucros extraordinários, inesperados, apresentam natureza retroativa. E o certo é que, da análise do Regulamento, da Proposta de Lei e, agora, da Lei n.º 24-B/2022, de 30 de dezembro, identificam-se, também neste campo, outras dificuldades, já que a contribuição tinha também por base margens apuradas pelas empresas antes da perspetivada entrada em vigor das novas contribuições em causa.

Por outro lado, o Tribunal Constitucional vem entendendo que “o legislador da revisão constitucional de 1997 (…) apenas pretendeu consagrar a proibição da retroatividade autêntica, ou própria, da lei fiscal, abrangendo apenas os casos em que o facto tributário que a lei nova pretende regular já tenha produzido todos os seus efeitos ao abrigo da lei antiga, excluindo do seu âmbito aplicativo as situações de retrospetividade ou de retroatividade imprópria, ou seja, aquelas situações em que a lei é aplicada a factos passados mas cujos efeitos ainda perduram no presente”.

Ora, aqui em particular, o Tribunal Constitucional tem entendido que quando estão em causa impostos (complexos e) de formação sucessiva (como é o caso do IRC), o facto tributário só se verifica no final do ano, pelo que a aplicação desde 1 de janeiro deste ano – e, portanto, a lucro já auferido –, pode não apresentar, à partida, problemas de retroatividade autêntica ou inautêntica, mas, quanto muito, de mera retrospetividade, que tem sido admitida pelo Tribunal Constitucional, a não ser que viole, de forma flagrante, o princípio constitucional da segurança jurídica.

Nota-se, porém, que neste caso a Lei n.º 24-B/2022, de 30 de dezembro, entrou em vigor no dia 31 de dezembro de 2022, isto é, no 365.º e último dia do ano de 2022, mas recaiu, como se viu, sobre os lucros auferidos ao longo dos 365 dias – anteriores – do ano de 2022, sendo, por isso, possível identificar, pelo menos, uma compressão evidente dos princípios da confiança e da segurança jurídica, que se apresentam como podendo ser merecedores de outra tutela e de diversa ponderação.

Haveria que definir, por último, mais precisa e objetivamente, em que termos é que se pode considerar tal lucro como “excessivo” para justificar a tributação “extraordinária”, o que o Regulamento e a Lei n.º 24-B/2022, de 30 de dezembro, já promoviam por referência aos anos de 2018 a 2021.

Neste âmbito, apresenta-se, porém, como discutível que nos casos em que a média dos lucros tributáveis relativa aos quatro períodos de tributação for negativa – isto é, em que os sujeitos passivos apresentaram prejuízos –, se considerasse que a média, para apuramento dos lucros excedentários, era igual a zero, incidindo a contribuição sobre a totalidade do lucro tributável referente aos períodos de tributação com início em 2022 e 2023.

Isto significa, com efeito, que estes sujeitos passivos podiam ficar sujeitos a uma tributação dos lucros superior a 60%, a que acresce a taxa de IRS de 28%, em caso de distribuição aos sócios.

Tal qual se estruturaram estas novas contribuições de solidariedade, previstas na Lei n.º 24-B/2022, de 30 de dezembro, não se confirmou, porém, estar-se perante (mais uma) situação suscetível de aumentar a litigância fiscal, o que podia determinar que o Estado fosse obrigado, pelos Tribunais, a devolver aos contribuintes o valor destas novas contribuições e a uma revisão da jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre a retrospetividade da lei fiscal.

Como tem dito Friedman, a inflação é a única forma de o estado aumentar os impostos sem qualquer intervenção do legislador, mas na verdade, o Estado (português e outros) esteve também a obter receitas adicionais “excessivas” em função dessa mesma inflação pois as mesmas taxas de imposto sobre valores superiores, porque inflacionados, resultam em (muito) mais receita de imposto. E tal como nos ensinou também Philippe Bullet, os governos deveriam ser constitucionalmente obrigados a promover a indexação da inflação anual aos impostos, nomeadamente no que respeita às deduções e aos escalões, e quer em sede de IRS como de IRC, parecendo insuficiente o que, neste aspeto, foi previsto na proposta de Lei do Orçamento do Estado para 2023 (OE 2023).

Por outro lado, e de acordo com as declarações do então Ministro do Ambiente e da Ação Climática, confirmadas na proposta de Lei do Orçamento do Estado para 2023 (OE 2023), não estava previsto que o Governo alterasse a Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético (CESE). Ou seja, ambas as contribuições vigorariam, ao que parece, em simultâneo e não eram dedutíveis, nem entre si, nem no IRC. O Ministro do Ambiente adiantou mesmo que "não há substituição de taxas, temos de ver como todos estes dois impostos combinam" – remetendo então para o Ministério das Finanças –, mas a verdade é que a retrospetividade não faz qualquer referência nem à CESE, nem à taxa de segurança alimentar “mais”.

Neste âmbito, é de salientar que se era verdade que o Regulamento (UE) 2022/1854 do Conselho previa expressamente que a nova contribuição acrescesse aos impostos e taxas normais aplicáveis em conformidade com o Direito de um Estado-Membro, previa também que assim poderia não ser no caso em que, como se viu, os Estados-Membros aplicassem já contribuições equivalentes.

Restava saber o que o Governo iria entender por “impostos e taxas normais” e se aqui se enquadrariam as contribuições financeiras setoriais extraordinárias, como a CESE, já que esta é, alegadamente, extraordinária e temporária (e não “normal”), mas o Governo de então pretendeu os sujeitos passivos do setor da energia e do setor alimentar efetivamente sujeitos, simultaneamente, à CESE e à taxa de segurança alimentar “mais” e, bem assim, a essas novas contribuições de solidariedade temporária.

Por fim, será relevante destacar que a CST Energia suscitou, igualmente, questões quanto à sua conformidade com o Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), na medida em que subsistiam dúvidas sobre se o art. 122.º, n.º 1 do TFUE, e o procedimento utilizado constituíam a base jurídica apropriada para a implementação de uma medida como a CST Energia, o que potencialmente poderia implicar uma violação do TFUE, com o necessário impacto nas liquidações da CST Energia.

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Lisboa, março 2024

Rogério Fernandes Ferreira
RFF Lawyers managing partner

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