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Sobre a majoração dos juros compensatórios na cláusula geral anti abuso (uma inconstitucionalidade tabu?)

29 Maio 2024
Sobre a majoração dos juros compensatórios na cláusula geral anti abuso (uma inconstitucionalidade tabu?)
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Sobre a majoração dos juros compensatórios na cláusula geral anti abuso (uma inconstitucionalidade tabu?)

29 Maio 2024

Ainda que timidamente, começa a ecoar a inconstitucionalidade dos juros compensatórios majorados no âmbito da Cláusula Geral Anti Abuso (CGAA), uma inconstitucionalidade tabu?

INTRODUÇÃO

Pouco se tem abordado sobre este tema na doutrina. Menos ainda é abordado pela jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores (a qual até à data se mantém ainda em silêncio).

Tudo começou com as alterações levadas a cabo pelo legislador ao artigo 38.º da Lei Geral Tributária (“LGT”), preconizadas pela Lei n.º 32/2019, de 3 de maio – supostamente, com vista à sua harmonização com a Diretiva 2016/1164 do Conselho, de 12 de julho de 2016.

Nesse âmbito, foi introduzida uma majoração aos juros compensatórios de 15% no caso de aplicação da CGAA (a acrescer à taxa de juros compensatórios de 4%).

Facto é que, curiosamente, a Diretiva 2016/1164 do Conselho, de 12 de julho de 2016 não previu qualquer majoração de juros compensatórios no âmbito de qualquer das suas disposições com vista ao combate às práticas de elisão fiscal.

Mas, timidamente, começaram a ecoar vozes no sentido da inconstitucionalidade dos juros compensatórios majorados na Cláusula Geral Anti Abuso (“CGAA”).

A TAXA DE JUROS COMPENSATÓRIOS MAJORADA NA CGAA

Começando pelo elemento literal, em caso de aplicação da CGAA, os juros compensatórios que sejam devidos são majorados em 15 pontos percentuais, sem prejuízo da coima devida nos termos do Regime Geral das Infrações Tributárias (“RGIT”).

Por conseguinte, a primeira ilação que se retira da letra da lei é a de que a taxa majorada dos juros compensatórios, em virtude da aplicação da CGAA (prevista no n.º 6 do artigo 38.º), de 15%, acresce à referida taxa de 4% prevista (no n.º 10 do artigo 35.º) da LGT, o que perfaz uma taxa de juros compensatórios (total) de 19%!

Estes juros – convém lembrar – são contados desde o momento do incumprimento (não entrega do imposto pelo contribuinte) até à data da emissão da liquidação adicional de imposto.

Em segundo lugar, a estes juros compensatórios, de 19%, acresce ainda o pagamento da coima, em virtude da falta de liquidação e de pagamento do imposto, a qual pode variar entre 15% do imposto em falta e o seu dobro, nos termos (do artigo 114.º) do RGIT.

E, finalmente, como não poderia deixar de ser, é devido o pagamento do próprio imposto omitido (nos termos do n.º 2 do artigo 38.º da LGT).

ANÁLISE DOS JUROS COMPENSATÓRIOS MAJORADOS NA CGAA

Passando aos elementos sistemático e teleológico da interpretação da norma em apreço (segundo se pode ler na Lei n.º 32/2019, de 3 de maio), o diploma “reforça o combate às práticas de elisão fiscal”. Ora, daqui se retira que, do pagamento de juros compensatórios majorados a uma taxa global de 19%, 4% correspondem à compensação pelo atraso na liquidação e pagamento do imposto (por culpa do contribuinte) e 15% correspondem a uma penalização do legislador com o intuito de desincentivar simulações de negócios com o desígnio de obter vantagens fiscais.

Os elementos sistemático e histórico apontam ainda no sentido de que “A presente lei transpõe para a ordem jurídica nacional a Diretiva (UE) 2016/1164, do Conselho, de 12 de julho de 2016”.

Sucede, porém, que em parte alguma da referida Diretiva se prevê a majoração dos juros, ou mesmo essa penalização.

Assumindo que esta taxa de juros compensatórios majorada assume natureza punitiva – tal como indica o diploma que a criou –, forçoso será concluir que a mesma viola o clássico princípio de proibição do ne bis in idem, na medida em que o contribuinte é penalizado mais do que uma vez pelo mesmo facto – no processo contraordenacional (entre 15% e 200% do imposto omitido, em função do grau de culpa do agente) e na majoração (fixada em 19% do imposto omitido).

Para além disso, é feita “tábua-rasa” das garantias típicas do Direito Penal e Contraordenacional, bem como sobre os critérios de determinação das medidas das penas (ou coimas) aplicáveis, sendo a taxa determinada de modo redutor, acrescendo 15 pontos percentuais à “verdadeira” taxa de juros compensatórios.

De facto, a taxa de juros compensatórios de 4% (a que se refere o artigo 35.º da LGT), essa, sim, assume verdadeira natureza compensatória, pelo atraso na liquidação do imposto devido por facto imputável ao contribuinte, correspondendo, exatamente, à mesma taxa dos juros indemnizatórios a que o contribuinte tem direito em caso de liquidação de imposto superior ao devido.

Mas esta taxa dos juros compensatórios majorados no caso de aplicação da CGAA viola, ainda, o princípio da capacidade contributiva, corolário do princípio da igualdade (previsto no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa). Contudo, e sem desfazer, considerando a natureza punitiva que esta taxa majorada assume, não nos parece que este princípio seja o preponderante para a aferição da eventual inconstitucionalidade destes juros majorados, na medida em que não se está perante imposto mas, sim, perante juro punitivo (e, portanto, esta sua natureza deve ultrapassar o argumento da capacidade contributiva para dissuadir os comportamentos que pretende evitar).

O problema, a nosso ver, é que tal função, punitiva, já se encontra assegurada pelo RGIT, ao prever coimas entre 15% e 200% do imposto omitido, em função, precisamente, da culpa do agente.

De relevar é, sem dúvida, para além do já referido princípio de proibição do ne bis in idem, a “tábua-rasa” que o legislador fez das garantias típicas do processo penal (nota-se que este juro majorado opera automaticamente, com a mera verificação de que é aplicável a CGAA, sem audição prévia e defesa do contribuinte), bem como a determinação da coima aplicável e os seus limites (existindo uma presunção inilidível de culpa, bastando a mera aplicação da CGAA, sem qualquer ponderação dos elementos que contribuem para a gradação da medida da pena/ coima).

CONCLUSÕES

Considerando o exposto, a taxa dos juros compensatórios global de 19% não parece compaginável com a natureza ressarcitória típica dos juros compensatórios, aproximando-se, mais, a juros com natureza sancionatória, em área, cinzenta, mais próxima do Direito Penal ou, pelo menos, do Direito Contraordenacional, suscitando, inevitavelmente, questões de inconstitucionalidade, sobretudo à luz do princípio de proibição do ne bis in idem.

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Rogério Fernandes Ferreira
Vânia Codeço
José Pedro Barros
Álvaro Pinto Marques
Mariana Baptista de Freitas
Inês Braga Reigoto
Leonor Gargaté Oliveira
Bárbara Malheiro Ferreira
Alice Ferraz de Andrade
Raquel Tomé Castelo

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