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A (não) tributação dos ganhos resultantes da alienação de um quinhão hereditário

18 juin 2024
A (não) tributação dos ganhos resultantes da alienação de um quinhão hereditário
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A (não) tributação dos ganhos resultantes da alienação de um quinhão hereditário

18 juin 2024

O Tribunal Arbitral constituído no CAAD – Centro de Arbitragem Administrativa, reiterando a jurisprudência consolidada nesta matéria, determinou, por decisão datada de 18 de janeiro de 2024, que a alienação onerosa de um quinhão hereditário, cuja respetiva herança integre bens imóveis, não pode assimilar-se, para efeitos de IRS, a uma alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis. Consequentemente, os eventuais ganhos decorrentes dessa operação de alienação de quinhão hereditário não estão sujeitos a tributação em sede de IRS, nomeadamente no âmbito da Categoria G.

ENQUADRAMENTO FACTUAL E PROBLEMÁTICA

No caso em apreço, levantou-se a questão de saber se a alienação onerosa de um quinhão hereditário, cuja respetiva herança é composta por bens imóveis, configura, ou não, uma alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis para efeitos de tributação em sede de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS).

A problemática surgiu no seguimento de uma correção efetuada, por parte da Administração tributária, à declaração de IRS da Requerente neste processo arbitral, relativa ao período de tributação de 2020. Nos termos da correção operada, a Administração tributária procedeu a uma alteração do valor de realização de um imóvel cuja respetiva venda havia sido previamente declarada pela Requerente, no Anexo G da sua Declaração Modelo 3 de IRS.

Sucede que, de acordo com a factualidade dada como assente, o que esta transmitiu foi, não um bem imóvel propriamente dito, mas, antes, o seu quinhão hereditário numa herança ilíquida e indivisa cujo acervo patrimonial, esse sim, integrava um bem imóvel.

Tendo a Administração tributária entendido que a referida operação de alienação do quinhão hereditário configurava, para efeitos de tributação, uma verdadeira alienação de um bem imóvel, da sobredita correção resultou uma liquidação adicional de IRS.

Por não concordar com a interpretação levada a efeito pela Administração tributária nesta matéria, a Requerente formulou, junto do CAAD, um Pedido de Pronúncia Arbitral contra o referido ato de liquidação adicional de IRS em causa nos autos.

DO ENTENDIMENTO PROPUGNADO PELA ADMINISTRAÇÃO TRIBUTÁRIA

Para sustentar o entendimento de que a alienação do quinhão hereditário em causa configura, na verdade, uma de alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis, invocou a Administração tributária, entre outros fundamentos, o seguinte:

Desde logo, entendeu que o quinhão hereditário detido pela Requerente configura um verdadeiro direito de propriedade sobre uma quota do imóvel que compõe o acervo hereditário. Mais entendeu que a Requerente, na qualidade de herdeira, deteve, desde o momento da aceitação da herança, o domínio e a posse dos bens que a integram, motivo pelo qual a venda do seu quinhão hereditário seria subsumível à norma do Código do IRS que sujeita a tributação, em sede de mais-valias, a alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis.

Ora, configurando, na perspetiva da Administração tributária, a alienação do quinhão hereditário uma alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis, então, os eventuais ganhos daí resultantes também se encontram sujeitos a tributação na proporção da quota hereditária da Requerente.

Com efeito, e para reforçar este entendimento, mais invocou que, no contexto tributário, a interpretação a empreender deve considerar a substância económica dos factos tributários, a qual não varia consoante o bem imóvel seja transmitido isoladamente ou integrado no quinhão hereditário da herança.

Por fim, invocou, ainda, o regime da compropriedade, nomeadamente a norma que determina que as regras da compropriedade são aplicáveis, com as necessárias adaptações, à comunhão de quaisquer outros direitos. E fê-lo para, com isso, persistir na equiparação entre a alienação de bens imóveis em regime de compropriedade e a alienação de quinhões hereditários cuja respetiva herança integra bens imóveis, concluindo, assim, pela inexistência de fundamentos para não se considerar que os ganhos decorrentes da alienação de quinhões hereditários não possam ser tributados, em sede de IRS, a título de mais-valias imobiliárias.

DOS FUNDAMENTOS DA DECISÃO DO TRIBUNAL ARBITRAL

Esclarecido o posicionamento das partes, o Tribunal Arbitral decidiu – reiterando o sentido decisório já proferido anteriormente na decisão arbitral, datada de 23 de dezembro de 2022, no âmbito do processo arbitral n.º 247/2022-T, cujo entendimento corresponde àquele que tem merecido o acolhimento maioritário da jurisprudência (entre outros, no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, datado de 25 de novembro de 2009, proferido no âmbito do processo n.º 0975/09) – no sentido de que: a alienação do direito ao quinhão hereditário constituído por imóveis não constitui uma alienação onerosa de direitos reais sobre imóveis, não se encontrando esta operação abrangida pela norma de incidência do Código do IRS que sujeita a tributação as mais-valias advenientes a alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis.

Efetivamente, só poderia ter sido este o sentido da decisão tomada, porquanto é o que mais se coaduna com o regime legalmente aplicável. Senão, vejamos:

Uma vez aberta a sucessão, desencadeia-se o chamamento de todos os herdeiros, conferindo-se-lhes o direito a suceder nas relações jurídicas de que o autor da sucessão era titular à data do seu decesso.

São, pois, os herdeiros que, ao aceitar a herança, sucedem no património do autor da sucessão. Contudo, ao aceitarem a herança, os herdeiros não adquirem, automaticamente, a propriedade dos bens específicos e determinados que compõem essa herança.

Com efeito, só com a partilha é que cessa a comunhão hereditária, passando cada herdeiro a ser o pleno titular da propriedade sobre os bens que lhes couberem em função da partilha realizada, podendo, a partir desse momento, exercer os respetivos direitos.

Assim, enquanto permanecer a indivisão, os herdeiros serão, apenas, titulares de um património comum, constituído por uma universalidade de bens, direitos e eventuais obrigações, abstratamente consideradas e idealmente definidas. Nesse contexto, cada herdeiro terá, apenas, direito à sua quota-parte ideal na herança, ou seja, ao quinhão hereditário, sem que se conheçam os bens concretos que preenchem essa quota. E haverá tantos quinhões hereditários quantos forem os herdeiros chamados à sucessão.

Significa isto, então, que, ao contrário do que sustenta a Administração tributária, até ao momento da partilha, os herdeiros não detêm qualquer propriedade sobre bens determinados que integrem o acervo hereditário, nem mesmo em regime de compropriedade. A compropriedade pressupõe a titularidade de um direito de propriedade comum sobre um bem concreto e individualizado, o que, como vimos, não ocorre no caso da contitularidade de um direito à herança.

E tanto é assim que, enquanto a herança permanecer indivisa e até à partilha, a universalidade de bens, direitos e eventuais obrigações que compõem o acervo da herança deve ser administrada por aquele que assumir a função de cabeça de casal. Nos termos da lei, é ao cabeça de casal que compete gerir o património hereditário, podendo este, inclusivamente, exigir de terceiros ou dos próprios herdeiros a entrega dos bens da herança sujeitos à sua administração.

Não obstante, a lei prevê a possibilidade de os herdeiros, se assim desejarem, alienarem o seu quinhão hereditário. Ora, esta alienação equivale à transmissão do conteúdo de um direito, abstratamente considerado e idealmente definido, sobre a referida universalidade de bens, direitos e eventuais obrigações a que corresponde o património comum de que os herdeiros são titulares até à partilha. Não se transmitem, portanto, quaisquer direitos sobre bens concretos com exclusão de outros. Aliás, dependendo da situação, a cessão do quinhão hereditário poderá até abranger a transmissão de responsabilidades da herança no pagamento das dívidas do autor da sucessão.

Em face do que antecede, é forçoso concluir, como concluiu o Tribunal Arbitral, que, ainda que a herança seja constituída apenas por bens imóveis, a alienação onerosa do quinhão hereditário não pode ser equiparada a uma alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis.

Assim, no caso em apreço, a Requerente nunca poderia ter sido considerada proprietária de um bem único, concreto e determinado, do quinhão hereditário, não sendo, por conseguinte, possível enquadrar a sua situação na norma do Código do IRS que sujeita a tributação as mais-valias advenientes da alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis. Consequentemente, os ganhos decorrentes da alienação onerosa do quinhão hereditário, mesmo que abstratamente composto por bens imóveis, não estão sujeitos a tributação em sede de IRS, nomeadamente a título de mais-valias.

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Rogério Fernandes Ferreira
Vânia Codeço
José Pedro Barros
Álvaro Pinto Marques
Mariana Baptista de Freitas
Inês Reigoto
Leonor Gargaté Oliveira
Bárbara Malheiro Ferreira
Alice Ferraz de Andrade
Raquel Tomé Castelo

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