A estranha vida da anterior redação da verba 2.23 da lista I anexa ao código do IVA (IVA a 6% na reabilitação urbana): um fim contrário aos seus princípios.
INTRODUÇÃO
O IVA na reabilitação urbana tem vindo a ocupar um espaço considerável na discussão jurídico-fiscal, mas também pública e política. Como qualquer taxa reduzida deste imposto, a aplicável a empreitadas de reabilitação urbana, agora à reabilitação de edifícios, têm merecido acesa discussão entre os contribuintes e a Administração tributária, também por culpa de normas cuja redação não é, desde logo, clara.
No que respeita à anterior redação desta verba, prevista na Lista I anexa ao Código do IVA, a jurisprudência tem sido fértil, nomeadamente a arbitral, porém sem que existisse um consenso notório quanto à sua interpretação. A RFF Lawyers tem produzido já diversos guias e newsletters sobre o tema, onde poderão consultar todo o histórico da norma em causa, a sua interpretação na jurisprudência e as alterações promovidas pela Lei “Mais Habitação”, que poderá consultar aqui: guia fiscal da reabilitação urbana, o IVA na reabilitação urbana, as alterações da Lei “Mais Habitação”.
Neste enquadramento, surge o agora publicado o Acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo n.º 0430/16 , proferido no âmbito de Recurso para Uniformização de Jurisprudência, o qual vem uniformizar a interpretação a ser seguida pelos tribunais num dos principais focos de discussão.
O ACÓRDÃO DO STA PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Este recente Acórdão foi proferido em Recurso de oposição de julgados interposto por um contribuinte de uma decisão arbitral. Nesta decisão, o Tribunal Arbitral havia decidido, e no que aqui importa face ao Acórdão de uniformização, no sentido de apenas poder ser aplicada a taxa reduzida de IVA a uma empreitada em que, além de o imóvel estar inserido em Área de Reabilitação Urbana (ARU) aprovada, fosse executada no contexto de uma Operação de Reabilitação Urbana (ORU) também aprovada.
Atendendo a que existiam decisões arbitrais em sentido diverso, o Recurso interposto pretendia a uniformização de jurisprudência relativamente a três questões:
• “se para beneficiar da taxa reduzida de IVA prevista na Verba (…), é suficiente “a verificação dos dois pressupostos lá expressamente previstos – tratar-se de uma empreitada de reabilitação urbana situada em área delimitada de reabilitação urbana – ou é exigível o preenchimento de outros requisitos ou pressupostos, designadamente os que se prendam com uma operação de reabilitação urbana”
• “se o conceito de empreitada de reabilitação urbana se aplica à construção de edifícios novos dentro da área delimitada de reabilitação urbana ou apenas abrange a reabilitação do edificado”
• “se a certificação, pelo município competente, de que se está perante uma empreitada de reabilitação urbana numa área delimitada de reabilitação urbana e no âmbito de uma operação de reabilitação urbana é suficiente para aplicação da taxa reduzida de IVA prevista na Verba (…)”
O Supremo Tribunal Administrativo, neste Acórdão de uniformização proferido em 26 de março de 2025, conforme acima antecipado, apenas conheceu do Recurso relativamente à primeira questão, referente à necessidade de um “terceiro requisito” de aplicação da verba 2.23 da Lista I anexa ao Código do IVA (CIVA), decidindo que:
• "só beneficiam da taxa de 6% de IVA prevista, conjugadamente, nos artigos 18.º, al. a) e na Verba 2.23 da Lista I anexa ao CIVA, as empreitadas de reabilitação urbana”»
• «a qualificação como “empreitada de reabilitação urbana” pressupõe a existência de uma empreitada e a sua realização em Área de Reabilitação Urbana para a qual esteja previamente aprovada uma Operação de Reabilitação Urbana.»
O sentido da decisão baseia-se, em resumo, na leitura que o Supremo Tribunal Administrativo faz do Regime Jurídico da Reabilitação Urbana, entendendo que uma empreitada, para se inserir no contexto desse diploma, terá de ser efetuada após a aprovação, pelo Município, da delimitação de ARU e da ORU (simples ou sistemática) a desenvolver, através de instrumento próprio ou de um plano de pormenor de reabilitação urbana.
CONCLUSÃO
O Supremo Tribunal Administrativo conclui, assim, que a verba em análise, ao fazer referência a “empreitadas de reabilitação urbana”, deverá ser interpretada, com base nos elementos sistemático e teleológico, no sentido de que o legislador terá pretendido a aplicação da taxa reduzida de IVA em empreitadas alinhadas com os desígnios da reabilitação urbana, ou seja, em empreitadas realizadas em imóveis situados em ARU e para as quais os municípios já tenham definido uma programação estratégica, concretizada em ORU simples ou sistemática.
Não impressionou o Supremo Tribunal Administrativo a faculdade concedida aos municípios de não aprovarem simultaneamente os dois instrumentos (a ARU e a ORU) um dos argumentos utilizados em sentido contrário, com a condição de estar aprovada uma ORU para a ARU onde se localiza o imóvel sujeito a obras no âmbito de uma empreitada de reabilitação urbana.
COMENTÁRIO FINAL
O agora publicado Acórdão de uniformização de jurisprudência vem, assim, encerrar uma já longa discussão sobre a interpretação da anterior redação da verba 2.23 da Lista I anexa ao CIVA.
Cremos, com o devido respeito, que o Tribunal decidiu em sentido algo formalista e burocrático e com base em pressupostos não previstos na referida verba, o que coloca, agora, a sua aplicação à mercê de uma atividade municipal que, na prática, limita (e muito) o seu escopo. E num sentido que, a nós, nos parece manifestamente contrário ao desígnio do legislador “fiscal”, como também cremos se poder perceber na redação agora em vigor da mesma verba 2.23.
Esta jurisprudência agora uniformizada cristaliza, também, uma interpretação que tem grande impacto na litigância fiscal em curso, aumentando os custos (de contexto) na construção e reabilitação dos imóveis inseridos em área de reabilitação urbana, para os quais, por motivos alheios ao contribuinte, possa não estar ainda aprovada, pelo respetivo Município, uma ORU.
Naturalmente respeitando e aceitando os argumentos e a decisão do Supremo Tribunal Administrativo, cremos que se cristaliza aqui também uma interpretação, da anterior redação da verba 2.23 da Lista I anexa ao CIVA, que é negativa para o setor imobiliário e para a reabilitação urbana em Portugal, imperando a “busca de mais um papel” que, nesta altura, é impossível de obter para combater os “efeitos retroativos” que, certamente, este Acórdão terá na definição de casos ainda em curso.
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Rogério Fernandes Ferreira
Marta Machado de Almeida
Álvaro Silveira de Meneses
Miriam Campos Dionísio
João de Freitas Jacob
José Nuno Vilaça
Joana Fidalgo Barreiro